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Perdidos na Base
Simon Schwartzman
(publicado em Simon's Site, 21/11/2015)
Com a melhor das intenções, o Ministério da Educação se lançou em um ambicioso projeto de produzir,
em alguns meses, o que seria a Base Nacional Comum Curricular, mobilizando mais de cem especialistas
que produziram um documento preliminar de 300 páginas que está disponível na Internet e aberto à
discussão. Quem quiser, entra o Site, diz o que pensa, e de alguma forma o Ministério juntará tudo e
produzirá um documento final estabelecendo o que todos os brasileiros devem aprender. Além disto,
centenas de reuniões estão sendo feitas em todo o país, para ouvir diretores de escola, secretários de
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educação, professores, etc. O prazo é curto: a fase de coleta de contribuições termina em 15 de dezembro,
e, até seis meses depois, tudo deveria estar pronto.
A proposta da Base Nacional lista todas as coisas boas de que os jovens devem ser capazes. Basta ler
alguns dos dez "direitos à educação" listados para ver o tom geral: "debater e desenvolver ideias sobre a
constituição da vida, da Terra e do Universo, sobre a transformação nas formas de interação entre
humanos e com o meio natural, nas diferentes organizações sociais e políticas, passadas e futuras, assim
como problematizar o sentido da vida humana e elaborar hipóteses sobre o futuro da natureza e da
sociedade". Mas a vida não são só ideias, e por isto precisam aprender também a "participar e se aprazer
em entretenimentos de caráter social, afetivo, desportivo e cultural, estabelecer amizades, preparar e
saborear conjuntamente refeições, cultivar o gosto por partilhar sentimentos e emoções, debater ideias
e apreciar o humor". O documento reconhece e a escola não é a única instituição responsável por todos
estes direitos, mas espera contribuir "mobilizando recursos de todas as áreas do conhecimento e de cada
de seus componentes curriculares, de forma articulada e progressiva" (os grifos são do texto).
Para fazer isto, a proposta especifica os objetivos de cada nível de ensino, da educação infantil à educação
média, e apresenta uma lista de "componentes curriculares" agrupadas em em quatro grandes "áreas do
conhecimento": linguagens (português, língua estrangeira moderna, arte e educação física), ciências
humanas (história, geografia, ensino religioso, filosofia e sociologia), ciências da natureza (biologia, física
e química) e matemática. Cada um destes componentes pode ser dividido em subcomponentes (o de
arte, por exemplo, inclui artes visuais, música e teatro, e a educação física inclui ginástica, luta corporal,
dança e esportes de aventura, entre outros).
Ao terminar o ensino médio aos 17 anos, nossos jovens deveriam poder, entre outras coisas, "interpretar
e analisar processos que envolvam a dimensão imagética do texto literário" em português e "apropriar-
se de recursos linguístico-discursivos para compreender e produzir textos orais e escritos na língua
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adicional", seja qual for; "perceber e explorar a teatralidade e performatividade dos gestos
comportamentais no quotidiano"; "compreender o significado e a importância da curva normal"; "utilizar
funções para representar situações reais"; "compreender o papel da meiose no processo de
gametogênese"; "compreender a relação entre cromossomos, genes e alelos"; "desenvolver modelagem
do núcleo atômico em seus componentes básicos (prótons e nêutrons)"; "reconhecer a natureza dual da
radiação e da matéria"; "representar as transformações químicas que acontecem em pilhas, baterias e
processos eletrolíticos por meio de equações químicas"; "identificar e analisar a pluralidade de
concepções históricas e cosmológicas de povos asiáticos e europeus"; "utilizar e articular múltiplas
linguagens e tecnologias, visando à ampliação de referenciais, para analisar e expressar a dimensão
espacial dos fatos e fenômenos;" "problematizar a divisão de classes no modo de produção capitalista"; e
"formular filosoficamente a pergunta sobre o sentido da vida e da morte".
Estas frases foram tiradas dos programas propostos para o 3° ano de nível médio das diversas matérias
do currículo e mostram com clareza o absurdo a que se chegou. Algumas disciplinas (as palavras "matéria"
e "disciplina", foram banidas do documento) serão melhores do que outras-em geral, as ciências naturais
e a matemática têm paradigmas e tradições razoavelmente bem estabelecidas, enquanto que as ciências
sociais são muito mais controversas, e muitas das propostas expressam as preferências ideológicas dos
autores. Além disto, não se explica porque se inclui a geografia, história, sociologia e filosofia, mas se
exclui a psicologia, o direito, a antropologia, a ciência política e a economia. É curioso que se fale de "uma
língua estrangeira", mas não se diga que esta língua deveria ser necessariamente o inglês, que é a língua
franca do mundo atual.
São questões que poderiam ser resolvidas mais adiante, mas este não é o maior problema. O pior é que
cada uma das áreas foi desenvolvida por um grupo de especialistas que colocou no papel tudo o que
achavam que os estudantes deveriam aprender de seu campo, sem que ninguém se colocasse na pele do
estudante que deveria aprender tudo isto.
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É possível pensar neste estudante de dois pontos de vista. O primeiro é do estudante ideal, inteligente e
de família culta, que fez um excelente curso de educação fundamental, e se depara aos 15 anos com esta
lista de coisas que deveria aprender, e excelentes professores e laboratórios aonde trabalhar. Será que
ele teria condições e interesse de aprender tudo isto nos três anos de educação média que tem pela
frente? A resposta, quase certamente, é não. Ele se interessaria mais por alguns temas do que outros, e
faria os demais por obrigação. Mesmo que conseguisse aprender todas as matérias "para passar", ou para
fazer o ENEM e entrar em uma universidade, logo depois esqueceria tudo que foi forçado a estudar e que
nunca mais utilizará em sua vida.
Mas pensemos nos estudantes brasileiros, muitos dos quais chegam ao ensino médio, quando chegam,
com escassos conhecimentos de língua portuguesa e matemática, já mais velhos, precisando trabalhar,
vindo de uma escola pública mal equipada e tendo muitas vezes que estudar à noite, com professores
cansados e nem sempre bem formados no que ensinam, e com pouca perspectiva de entrar em um curso
superior (a grande maioria nunca entrará). Para eles, o amontoado de matérias que têm pela frente faz
muito pouco sentido, e, ou ele abandona o curso em pouco tempo, ou os professores facilitam sua vida,
transformando os cursos em pílulas de conhecimento que bastam, para os alunos, decorar para passar,
mas não servem para mais nada.
Para uns como para outros, a elaboração de uma descrição detalhada de todos estes conteúdos, se bem
feita, poderia servir de referência para os cursos a ser oferecidos pelas escolas, mas precisam estar
associadas a um entendimento claro sobre a maneira pela qual estes conhecimentos e competências
serão transmitidos e desenvolvidos, com possibilidades de escolha, e a uma noção clara do que é
prioritário e essencial e o que é secundário, em situações e para pessoas diferentes.
A proposta da base nacional curricular, sobretudo na parte do ensino médio, parte de duas premissas
profundamente equivocadas. A primeira foi esquecer que, nos países que tentaram algo semelhante, o
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que se buscou foi o "common core" nos Estados Unidos, ou o "socle commun" na França, um núcleo
central de conhecimentos essenciais para que os estudantes possam se desenvolver ao longo da vida, e
não uma lista detalhada de todos os conteúdos dos currículos escolares. O que talvez explique o caminho
adotado pelo Ministério da Educação foi a preocupação de garantir que os estudantes adquirissem os
conhecimentos necessários nas idades e séries certas, o que faz sentido para a educação fundamental,
mas deveria ser restrito, de toda forma, a um núcleo central de conhecimentos e competências,
sobretudo no domínio da linguagem escrita e falada e do raciocínio matemático. Ao invés de se
concentrar no "core", no núcleo, o que se fez foi tentar definir o corpo inteiro a partir de suas partes, com
o risco de criar um Frankenstein.
A segunda premissa equivocada foi a de supor que as diversas áreas do conhecimento, desenvolvidas por
grupos de trabalho separados, de alguma maneira se harmonizariam na cabeça dos estudantes. Ainda
predomina, entre muitos educadores, um mito que já se desfez há muito tempo, de que de alguma forma
todos os conhecimentos deveriam se integrar em uma cultura ou sistema de conhecimento coerente, que
os alunos deveriam aprender. Sociólogos como Émile Durkheim, na França, ou Ferdinand Tõennies, na
Alemanha, já escreviam desde o século XIX sobre a divisão do trabalho nas sociedades modernas e
complexas, em que cada um se especializa em uma atividade diferente, e o todo se estrutura pela
combinação das partes diferentes. Os filósofos, desde as "Investigações filosóficas" de Wittgenstein,
abandonaram a busca de um fundamento único para todas as ciências, e historiadores e sociólogos da
ciência, como Thomas Khun e Tony Becher, mostraram que não existe um mundo integrado da ciência e
métodos científicos universais, mas conhecimentos especializados, culturas científicas e profissionais
distintas, cada qual com seus paradigmas e práticas de trabalho próprios. C. P. Snow, décadas atrás,
escreveu sobre as "duas culturas" que separavam (e ainda separam) as ciências naturais e as
humanidades, mas estas divisões não se dão somente entre as grandes áreas de conhecimento, mas
dentro de cada uma delas, com o número crescente de especialidades e o surgimento de novas áreas de
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pesquisa multidisciplinar. Organizar esta grande pluralidade em quatro grandes áreas do conhecimento,
pode fazer sentido no papel, mas é arbitrária e não tem nenhuma realidade própria (a UNESCO, em
comparação, tem uma classificação de 10 áreas de conhecimento para fins de educação, divididas em um
grande número de áreas e subáreas mais específicas, que é diferente, por sua vez, do " Frascati Manual "
utilizado nas pesquisas da OECD).
Durkheim acreditava que cabia à educação pública criar o cimento que pudesse unir as pessoas no mundo
das especializações, mas isto se daria sobretudo pelo ensino da cultura e dos valores básicos, e não do
compartilhamento dos conhecimentos especializados. O tema do núcleo comum de conhecimentos que
todos deveriam ter tem sido objeto de muitos debates e polêmicas, sendo mais famosas, possivelmentes,
as propostas de Mortimer Adier e Harold Bloom, nos Estudos Unidos, de que deveria haver um conjunto
de "grandes livros" que todos deveriam ler, e que constituiriam o "cânone", ou a base da cultura ocidental,
tese contestada depois pelos que argumentavam que os livros propostos eram todos de autores WASP e
não incluíam as perspectivas das minorias e de outras culturas e civilizações.
Dada a suposição de que todas as áreas do conhecimento se integrariam, seria de se esperar que a
proposta da base nacional contivesse uma tentativa de mostrar como isto se daria, mas o que se observa
é que não existe nem mesmo uma estimativa de quantas horas seriam necessárias para ensinar tudo isto,
considerando, ainda, o princípio de que ela se limitará a 60% do tempo dos alunos, com o restante
dedicado a "conteúdos regionais" não especificados. Mas 60% de quanto? Das 2.400 horas, que são as
disponíveis na grande maioria das escolas do país em regime de 4 horas diárias, que são na prática muito
menos nas escolas noturnas? Ou das 4.200 desejadas pelo Plano Nacional de Educação, uma de tantas
metas inalcançáveis no futuro previsível?
Na prática, as tentativas de dar à educação uma estrutura coerente e integrada foram quase sempre parte
de projetos políticos conservadores ou autoritários, centrados em questões culturais, morais e religiosas.
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como a "educação moral e cívica" dos governos militares, educação religiosa nas escolas confessionais e
a educação marxista dos regimes comunistas. Mas raras vezes trataram de incluir as áreas científicas e
técnicas, que geralmente se mantiveram independentes e separadas. Isto também ocorre, embora de
forma implícita, nos conteúdos propostos na área de ciências humanas da base nacional, onde
predominam valores igualitários, coletivistas e anticapitalistas, por oposição a valores de desempenho,
individualistas e de economia liberal, que não têm o mesmo espaço para ser apresentados e defendidos.
A existência de um núcleo nacional comum continua sendo uma necessidade, mas a atual proposta não
tem como se implantar, independentemente dos prazos do Plano Nacional de Educação. Tal como em
outros países, como nos Estados Unidos, a base deveria se limitar aos domínios da linguagem e do uso da
matemática, e não ir além do ensino fundamental. A França é mais ambiciosa, e inclui sete "competências"
que se espera que os estudantes adquiram até o fim da escolaridade obrigatória, que vai até os 15 anos
(domínio da língua francesa, prática de uma língua estrangeira viva, elementos principais de matemática
e cultura científica e tecnológica, domínio das técnicas usuais de informação e comunicação, cultura
humanista, competências sociais e cívicas, e autonomia e iniciativa). A ênfase é nas competências, e não
nos conhecimentos específicos, que fazem parte dos currículos regulares das diferentes disciplinas.
Seria uma grande revolução se fosse possível estabelecer, com clareza, o que todas as crianças deveriam
aprender até os 15 anos de idade em linguagem e matemática, e se conseguíssemos que elas realmente
aprendessem o necessário. A razão pela qual não existem bases curriculares para o ensino médio em
países com sistemas escolares muito melhores do que o nosso é que, em todo o mundo, os 15 ou 16 anos
são o momento das escolhas e da diversificação, e não de continuação da educação comum que se
completa até aí. Muito sabiamente, a Constituição de 1988, no artigo 210, fala na fixação dos conteúdos
comuns para a educação fundamental, mas não para a média. O exame de PISA, da OECD, que é hoje a
principal referência internacional para a avaliação da educação, é feito para jovens de 15 anos, e muitos
países avaliam seus alunos a esta idade, quando termina a educação obrigatória, para servir de referência
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para as diferentes opções de formação posterior. Nesta perspectiva, a ampliação da educação obrigatória
para os 17 anos pela emenda constitucional 59 de 2009, e a tentativa de estabelecer um currículo
obrigatório comum para este nível, devem ser considerados como equívocos a serem corrigidos.
Se, aos 15 anos, como ocorre no Brasil, muitos jovens ainda não adquiriram as competências centrais
necessárias para continuar estudando e se desenvolvendo, então é necessário continuar a trabalhar com
elas, no uso da língua e do raciocínio matemático, mas não criar novas exigências. O jovem de 15 a 18
anos não é mais a criança ou adolescente de antes, e precisa achar um caminho que lhe faça sentido e
esteja a seu alcance, conforme seus interesses, a formação que teve até aquele momento e as
possibilidades de estudo que estejam disponíveis. Os que pretendem ir logo para um curso universitário
precisam ter tempo para se aprofundar nos campos de estudo de preferência; os que precisam trabalhar,
ou já trabalham, necessitam adquirir as competências técnicas, cognitivas e não cognitivas valorizadas
para o mercado de trabalho. Uma coisa não pode excluir a outra: a formação geral, ou propedêutica, deve
também lidar com o mundo real, e a formação técnica e profissional não pode fechar o caminho para
estudos mais avançados. Nem todos os jovens, no ensino médio, já sabem o que querem ou podem
estudar e fazer, e por isto precisam de informação, orientação individualizada, tutoria e tempo para
experimentar diferentes caminhos. É nesta orientação personalizada, e não no acúmulo de matérias a
serem digeridas em poucos anos, que pode se dar a verdadeira integração entre as diversas experiências
de estudo e aprofundamento, que serão diferentes para cada um.
O formato alternativo que está sendo proposto para o ensino médio é dedicar no máximo metade do
tempo disponível para as atividades de formação geral que já deveriam ter sido completadas no ensino
fundamental, e a outra metade para o aprofundamento em uma área específica de formação geral, nas
ciências naturais, ciências sociais e humanidades, ou em uma área de formação técnica e profissional,
além de espaço para cursos eletivos. Estas áreas necessitam de currículos bem definidos, conteúdos a
serem dominados e competências a serem desenvolvidas, mas só para quem os escolham, e não para
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todos. Com mais tempo, os estudantes poderão fazer pesquisas, escrever, desenvolver trabalhos práticos,
conversar com os professores e fazer estágios em empresas, que contarão como créditos para sua
formação. A introdução de um ensino médio com este novo formato exigirá a transformação do atual
ENEM, enciclopédico, em uma prova de competências gerais em linguagem e matemática e um conjunto
de provas optativas nas diversas áreas de formação e aprofundamento, assim como de sistemas de
certificação para os que optarem por cursos técnicos profissionais.
A grande objeção que muitas vezes se ouve é que um sistema diferenciado como este institucionalizaria
a desigualdade, como se o sistema atual, que aliena a grande maioria dos estudantes, não fosse o grande
mecanismo de discriminação social que é. A maior dificuldade é que não sabemos como passar de uma
educação burocrática e rasa, em que os alunos se limitam a repetir conteúdos que não compreendem
para passar no ENEM, quando o fazem, a um sistema educacional que realmente oriente cada estudante
e abra possibilidades de escolhas e caminhos realistas e individualizados. Temos muito que aprender, e
não serão as belas palavras da Base Nacional Curricular Comum proposta pelo MEC que nos ajudarão
neste percurso.